quarta-feira, 16 de maio de 2012

Ritual e Ética no Candomblé

O Candomblé opera em um contexto ético no qual a noção judaico-cristã de pecado não faz sentido. 

A diferença entre o bem e o mal depende basicamente da relação entre o seguidor e seu deus pessoal, o Orixá. 

Não há um sistema de moralidade referido ao bem-estar da coletividade humana, pautando-se o que é certo ou errado na relação entre cada indivíduo e seu Orixá particular. A ênfase do Candomblé está no rito e na iniciação, que, como se viu brevemente, é quase interminável, gradual e secreta. 

O culto demanda sacrifício de sangue animal, oferta de alimentos e vários ingredientes. 

A carne dos animais abatidos nos sacrifícios votivos é comida pelos membros da comunidade religiosa, enquanto o sangue e certas partes dos animais, como patas e cabeça, órgãos internos e costelas, são oferecidas aos Orixá. Somente iniciados têm acesso a estas cerimônias, conduzidas em espaços privativos denominados quartos-de-santo. 

Uma vez que o aprendizado religioso sempre se dá longe dos olhos do público, a religião acaba por se recobrir de uma aura de sombras e mistérios, embora todas as danças, que são o ponto alto das celebrações, ocorram sempre no barracão, que é o espaço aberto ao público. As celebrações de barracão, os toques, consistem numa seqüência de danças, em que, um por um, são honrados todos os Orixá, cada um se manifestando no corpo de seus filhos e filhas, sendo vestidos com roupas de cores específicas, usando nas mãos ferramentas e objetos particulares a cada um deles, expressando-se em gestos e passos que reproduzem simbolicamente cenas de suas biografias míticas. Essa seqüência de música e dança, sempre ao som dos tambores (chamados rum, rumpi e lé) é designada xirè, que em yorubá significa "vamos dançar". 

O lado público do candomblé é sempre festivo, bonito, esplendoroso, esteticamente exagerado para os padrões europeus e extrovertido. 

Para o grande público, desatento para o difícil lado da iniciação, o Candomblé é visto como um grande palco em que se reproduzem tradições afro-brasileiras igualmente presentes, em menor grau, em outras esferas da cultura, como a música e a escola de samba. Para o não iniciado, dificilmente se concebe que a cerimônia de celebração no Candomblé seja algo mais que um eterno dançar dos deuses africanos.

A Iniciação em uma Casa de Candomblé Ketu




O sacerdócio e organização dos ritos para o culto dos Orixá são complexos, com todo um aprendizado que administra os padrões culturais de transe, pelo qual os deuses se manifestam no corpo de seus iniciados durante as cerimônias para serem admirados, louvados, cultuados. 

O ritual de iniciação no Candomblé, a feitura no santo, representa um renascimento, tudo será novo na vida do Iyàwó, ele receberá inclusive um nome pelo qual passará a ser chamado dentro da comunidade do Candomblé. 


A feitura tem por início no recolhimento. São 21 (vinte e um) dias de reclusão e neste prazo são realizados banhos, boris, oferendas, ebós, todo o aprendizado começa, as rezas, as dança, as cantigas... 

E feito a raspagem dos cabelos (orô) e o abiã recebe o oxu (representa o canal de comunicação entre o iniciado e seu orixá), o kelê, os delogun, o mokan, o xaorô, os ikan, o ikodidé. O filho de santo terá que passar agora por um ritual, onde terá seu corpo pintado com giz, denominado efun. Ele deverá passar por este ritual de pintura por 7 (sete) dias seguidos. 

O abiã terá agora que assentar seu Orixá e ofertar-lhe sacrifícios de animais de acordo com as características de cada um. Feito isso ele passa a chamar-se Iyàwó. 

A festa ritualística que marca o término deste período é denominado Saída de Iyàwó. Neste momento, ele será apresentado à comunidade, sendo acompanhado por uma autoridade à frente de todos para que lhe sejam rendidas homenagens. 

Deitado sobre uma esteira, ele saudará com adobá e paó, que são palmas compassadas que serão dadas a cada reverência feita pelo Iyàwó e acompanhada por todos presentes, como demonstração de que a partir daquele momento ele nunca mais estará sozinho em sua caminhada.



Primeiramente saudará o mundo, neste momento a localização da esteira é na porta principal da casa. No seu interior, ele saudará a comunidade e por último, frente aos atabaques que representam as autoridades presentes. Neste primeiro momento o Orixá somente poderá dar o jicá. Só após a queda do kelê, o Orixá poderá dar seu ilá. 

O momento mais aguardado do cerimonial é o orukó. Neste momento, o Orixá dirá o nome de iniciação de seu filho perante todos e também é neste momento que abre-se sua idade cronológica dentro de sua vida no santo. 

Após a saída e depois dos 21 (vinte e um) dias de recolhimento, o Iyàwó permanecerá de resguardo até a queda de kelê, por um período de 3 (três) meses fora do barracão, neste período ele não poderá utilizar talheres para comer, deve continuar a se sentar no chão sobre a esteira durante as refeições, está proibido de utilizar outra cor de roupa que não o branco da cabeça aos pés, não poderá fazer uso de bebidas alcoólicas, cigarro. .. E nem tão pouco sair à noite. E até que se complete 1 (um) ano, seus preceitos continuarão. 

Até que o Iyàwó complete a maior idade de santo, que é de 7 anos, com todas obrigações devidamente tomadas, terá que continuar dia a dia seu aprendizado e reforçar seus votos por meio das obrigações. 

No candomblé, sempre estão presentes o ritmo dos tambores, os cantos, a dança e a comida (Motta, 1991). Uma festa de louvor aos Orixá (toque) sempre se encerra com um grande banquete comunitário (ajeum, que significa "vamos comer"), preparado com carne dos animais sacrificados. 

O novo filho-de-santo(a) deverá oferecer sacrifícios e cerimônias festivas ao final do primeiro, terceiro e sétimo ano de sua iniciação. 

No sétimo aniversário, recebe o grau de senioridade (Ûgbïnmi, Eegbomi, que significa "meu irmão mais velho"), estando ritualmente autorizado a abrir sua própria casa de culto. Quando o Egbomi morre, rituais fúnebres (asèsè) são realizados pela comunidade para que o Orixá fixado na cabeça durante a primeira fase da iniciação possa desligar-se do corpo e retornar ao mundo paralelo dos deuses (Îrun) e para que o espírito da pessoa morta (egúngún) liberte-se daquele corpo, para renascer um dia e poder de novo gozar dos prazeres deste mundo.

OBAALA OLUWO IFARUNAOLA

A INICIAÇÃO


No Brasil e em vários lugares do mundo existem milhares e milhares de pessoas que, maravilhadas pelo mistério dos Òrìsà. Quer sejam descendentes de africanos, europeus, asiáticos ou de qualquer outra raça do planeta, acabam transpondo as portas da iniciação, surpreendidos pelo paradoxo de defrontar-se com crenças alicerçadas em rituais de rebuscada complexidade e ao mesmo tempo simples de entendimento na sua essência. As cerimônias são alegres, coloridas, embaladas pelo som dos tambores nos quatro cantos do mundo, agregando pessoas de todas as camadas sociais; contudo, o aprendizado ritual e filosófico requer estudos sérios e contínuos, que acompanharão o iniciado pela vida afora. Que mistérios são esse, ocultos em meio a lendas e ensinamentos de sabedoria ancestral? O que na verdade leva pessoas às mais diferentes tradições afro-descendentes, em busca da iniciação? 

1 - O QUE É INICIAÇÃO?

Iniciar-se (popularmente no Brasil diz-se "fazer santo") é possibilitar através de rituais próprios que o lado divino da criatura transpareça; é libertar o Deus Interior (Ori Inu) que existe em cada ser humano, permitindo-lhe vir à tona e provocar impulso irresistível capaz de conduzir a individualidade à realização pessoal, estabelecendo dessa maneira a mais perfeita comunhão possível com o Universo, com a Natureza, com o Criador, enfim, com a própria Vida, em seu pulsar infinito. Corpo físico, mente e alma são ritualisticamente preparados para componentes da manifestação divina. Condições propícias são estabelecidas para que a memória ancestral possa florescer nos recessos do inconsciente, produzindo muitas vezes o transe, em suas mais variadas formas e também variados graus. "Fazer santo" é nascer de novo, renascer como indivíduo mais forte, completo, potencialmente seguro, com melhores condições para, ao abandonar medos, traumas ou bloqueios, lançar-se inteiro na busca da realização pessoal.

2 - POR QUE SE INICIAR? "FAZER SANTO"?

Conhecer a si mesmo: pressuposto básico para a realização pessoal em todos os níveis. Desde sua origem o ser humano anseia pelo encontro com o Infinito. Essa busca incansável frequentemente provoca verdadeiras batalhas que são travadas no interior do indivíduo, acompanhadas por sentimentos de angústia, ansiedade, inconformismo ou até mesmo desespero frente ao desconhecido ou ao irremediável: as fatalidades e incertezas do amanhã, o ciclo da vida, a morte. Todo esse processo destina-se a criação de ambiente propício ao tão sonhado encontro. A história da humanidade espelha essa incansável busca de respostas aos enigmas da vida:

Quem sou eu?

De onde venho?

Para onde vou?

A felicidade é perseguida por todos, sendo muitas vezes um desejo alimentado pela incerteza: "Quero ser feliz, mas não sei bem o que é felicidade". E o ser humano continua a colocar a própria felicidade longe de si mesmo, em circunstâncias exteriores: dinheiro, posição, poder, fama, ou na dependência de outras pessoas: "Se ele - ou ela - me amar, serei feliz".

Há milhares de anos, o nativo do continente africano já tinha os mesmos anseios: conhecer seu Deus, os mistérios do Universo, a origem da Vida. Olodumárè (o Criador), em sua Graça e Poder infinitos, permitiu-lhes conhecer a sabedoria do IFA (a revelação): a Criação do Universo e dos seres humanos, os princípios que regulam as relações entre Ilú Aiyé (a Terra) o Orún (mundo espiritual) e o conhecimento dos Òrìsa, divindades partícipes da Criação e intermediárias entre Deus (Olodumárè) e os homens.

Desenvolveram-se rituais iniciáticos para os mistérios dos Òrìsà, como forma de realizar o sagrado em si mesmo, ou seja, permitir que o Deus Interior, na figura de um ancestral divino, desperte em cada indivíduo e estabeleça a ponte com o Cosmos, tão necessária à realização pessoal, tornando-o assim capaz de fazer escolhas mais acertadas e consequentes em relação à vida e aos semelhantes, na construção da própria felicidade. A compreensão clara de que destino é possibilidade e não fatalidade é a base dessa realização. O conhecimento das forças que regem o Universo e a Vida nas suas mais variadas formas e meios de manifestação, bem como dos princípios que regulam essa interação é o caminho da Iniciação.

3 - INICIAÇÃO: QUEM, QUANDO E COMO?

O momento do chamado é diferente para cada pessoa. Para alguns, uma doença difícil de ser curada: outros, as dificuldades do próprio caminho; outros ainda buscam fugir às religiões tradicionais por concluírem que muitas delas estão tão voltadas para o dia a dia dos homens e seus interesses imediatos que acabam fugindo à sua real finalidade: promover o encontro do ser com a Divindade. Ampará-lo em suas dificuldades espirituais e consequentemente, também as materiais. Alguns ainda são provenientes de outras religiões ou filosofias espiritualistas; finalmente, existem aqueles que simplesmente são tocados pelo Òrìsà, nos recessos da própria alma. Muitos são descendentes de africanos, mas não é regra. Na África o culto está realmente ligado às famílias, mas no Brasil, principalmente a miscigenação, trouxe para toda a população a denominação afro-descendente. A iniciação (feitura) propriamente dita acontece num período de reclusão que varia de sete a dezessete dias. Esse período é comparável a gestação na barriga da mãe; nesse aspecto, o aposento sagrado representa o ventre da própria mãe natureza. O neófito aprende os mistérios básicos das divindades e da Criação; os costumes da comunidade e os princípios que regulam as relações da família religiosa (hierarquia sacerdotal); as formas adequadas de comportamento nas cerimônias públicas e restritas. Conhecimentos acerca de seu próprio Òrìsà lhe são ministrados: a maneira adequada de cultuá-lo, suas proibições (ewò) (quando houver), as virtudes que deverão ser cultivadas e os vícios que deverão ser evitados para atrair influências benéficas e uma relação harmoniosa com a divindade pessoal.

4 - O QUE PODE MUDAR NA VIDA DO INICIADO?

O Destino é dado a cada ser na forma de possibilidade, nunca como fatalidade. Desse modo, quem antes de voltar ao mundo escolheu, por exemplo, ser médico, ao renascer na Terra encontrará em seu caminho situações que o direcionem para essa profissão. Entretanto, isto não quer dizer que necessariamente venha a exercer a medicina. Ele pode a qualquer tempo mudar os rumos da própria vida através do exercício do livre-arbítrio (o que, aliás, é um conceito universal). Cada qual constrói a própria história. Ocorre muitas vezes a pessoa acabar fazendo escolhas erradas e sofrendo consequências desastrosas. Pode ser fruto de um destino ruim, que exigirá tempo e determinação para ser superado. A dor transforma-se em companheira constante. Ligam-se a tudo isso os problemas do dia a dia (para não mencionar a situação difícil da sociedade contemporânea); o conjunto acaba provocando sentimentos de impotência frente aos obstáculos e encruzilhadas da vida, ou simplesmente solidão, carência de aconchego, de orientação, de coragem. Carência de fé. O Òrìsà pessoal, nesse particular, pode influenciar e muito, prevenindo ou mesmo remediando tais situações, conferindo força e equilíbrio ao seu tutelado, restaurando-lhe as energias, estendendo-lhe proteção e orientando-o quanto ao melhor caminho a seguir. Mas o indivíduo deve permitir que o Òrìsà atue de modo construtivo na sua própria vida. Òrìsà não representa problema no caminho de ninguém - pode significar a solução. Através do seu apoio divino o ser humano pode criar condições para vencer as barreiras internas e externas para a construção de um futuro melhor.

IGBERE – INICIAÇÃO

A presença do orisa na vida de uma pessoa depende do fortalecimento do ori para acoplamento do seu ase, através do ritual de iniciação. Após diversos tipos de ebo, banhos de folhas e Ebori, o iniciando está purificado e fortalecido para ter plantada no seu corpo a energia do seu orisa tutelar. Trata-se de ritual complexo e com características sob medida para a entidade única que é o iniciando em questão e o seu orisa. O ritual de iniciação não decorre de desejo próprio, mas depende de prescrição oracular e conforme o próprio termo, marca, não a concretização, mas o início de um aprendizado e desafios constantes que requerem disciplina e dedicação espiritual pelo resto da vida.

Não implica em qualquer tipo de submissão contrariada, pois o ori é soberano no seu livre-arbítrio. No entanto, uma vez tendo vivenciado a sublime e divina presença do orisa, o afastamento deste, mesmo que voluntário, se faz sentir como um vazio sombrio que pode até ser confundido – errôneamente - com castigo. O orisa não necessita infringir castigos, primeiro porque, como energia da natureza, não depende da adesão de devotos - nós é que precisamos do orisa - segundo, porque a sua simples ausência em nossas vidas, já se caracteriza por si só, como desgraça.